Inimaginável Mundo Novo

Denise C. Rolo

Denise C. Rolo

Dedica-se atualmente à prática de clínica privada com intervenção centrada nas áreas da infância, adolescência e parentalidade.

Dou comigo a pensar como se sentiria a noiva, no dia do seu casamento, enquanto se apronta, familiares próximos a ajudá-la quando, de repente, se apercebe que na sua janela está uma mão cheia de gente colada ao vidro, olhos esbugalhados a tentar perceber a marca do vestido, se é bonito ou não, ou se a cor do batom condiz com a sua tez. No mesmo instante, uma outra mão cheia de gente, mais atrevida, empurra a porta do quarto para ver com mais clareza como vão os preparativos daquele grande dia. Um grande dia que não é deles. Pergunto-me, genuinamente, como se sentiria a noiva e arrisco-me a dizer que, muito provavelmente, diria algo como: “Respeitem o meu espaço. Respeitem a minha privacidade.”

Dou comigo a pensar como reagiria o adolescente a almoçar no restaurante da moda e, de repente, um grupo de pessoas o circundasse, nariz espetado na mesa e uma torrente de questões: “O que é isso que estás a comer? Essa cena amarela é ananás? Miúdo, tu és daqueles que mistura fruta com carne? A sério?” Pergunto-me, genuinamente, como se sentiria o adolescente e arrisco-me a dizer que, muito provavelmente, diria algo como: “Perguntei-vos alguma coisa? Respeitem o meu espaço. Respeitem a minha privacidade.”

Também dou comigo a pensar na rapariga que chega à praia, deita-se na toalha à espera unicamente do sol de agosto quando, de repente, é inundada por gente a cuspir perguntas desesperadas sobre a marca do bikini, a cor, a loja, e aquilo ali, será uma estria? Que horror. Pergunto-me, genuinamente, como se sentiria a rapariga e arrisco-me, uma vez mais, a dizer que, muito provavelmente, diria algo como: “Respeitem o meu corpo. Respeitem a minha privacidade.”

Parece uma realidade inimaginável, não me diria? Mas a verdade é que, se pararmos para pensar, estes cenários que ousei escrever com generosas doses de ironia, não são assim tão inimagináveis. Há uma espécie de inocência conveniente de separar a vida física da digital, como se aquilo que acontecesse dentro de um telemóvel, fosse o equivalente a janelas fechadas, sem brechas de luz. Quando é que essa inocência ridícula vai acabar? Proclamar direito à privacidade deveria ser mais abrangente e sem espaço para contradições grosseiras. Poderá mesmo uma noiva ressentir-se por uma crítica alheia quando, em primeiro lugar, se expôs a essa janela sem cortina? E o adolescente que come ananás poderá ficar chateado se o criticarem por isso quando, em primeiro lugar, foi o próprio a fotografar a fruta prestes a ser engolida? E a miúda do bikini, poderá ela ficar ofendida se lhe criticarem as estrias? Claro que pode. Mas e se, numa primeira instância, usufruísse apenas do mar e deixasse o telemóvel resignado na toalha, sem pedir opinião a ninguém?

Sobre este último exemplo, já consigo ouvir as feministas, em tom pouco feminino, a falar da liberdade do corpo e mil outras teorias. E eu tiro-vos o chapéu. Têm toda a razão, mas, seguindo os sábios princípios da minha avó, eu diria: “Quem não quer ser lobo, não lhe vista a pele.” E isto é transversal a todos os exemplos que desenhei aqui.

Viver a vida apenas ao ritmo dos nossos desejos e vontades, poderá traduzir-se num grande tiro no pé. Se liberdade pressupõe responsabilidade, privacidade também deveria implicar essa mesma responsabilidade. Não podemos esperar que a publicação de uma fotografia nos garanta o elogio que nos faça ganhar o dia, numa transformação doentia das redes sociais a uma feira de vaidades. Repare: esse elogio pode não chegar e nas beiras desse caminho, crescem ervas daninhas. Não se pediram críticas nem comentários brejeiros, mas eles chegaram na mesma, porque a vida é feita, sim, dessas polaridades. As ervas continuam a crescer e nesse percurso, teremos cada vez mais crianças, adolescentes e jovens pouco preparados e tão amedrontados com o que poderá saltar dos telemóveis quando, numa primeira instância, foram os próprios a criar essas circunstâncias, publicando, mostrando, esperando. E até, desesperando.

Se no mundo físico ficaríamos abismados com alguém que nos entrasse porta dentro, sem pedir, porque ficaríamos nós tão chateados com alguém que comenta a janela que nós próprios, de livre e espontânea vontade, não só a abrimos como ainda afastamos as cortinas de par em par?

É urgente olhar para dentro. Tanta conexão e tão tamanha solidão. Se Aldous Huxley me pudesse ler estaria, creio, bastante admirado por tantos anos depois, continuar tão certo no desespero das pessoas por uma felicidade sem sofrimento. Isso não existe. Que não se iludam os miúdos. A vida precisa, sim, de cortinas, janelas privadas que se abrem apenas quando há um verdadeiro sentido nisso, priorizando quem se é para lá daquilo que tanto se quer dar a parecer.

Um desenvolvimento emocional saudável pressupõe balizar limites que se querem pessoais, privados. Mais do que nunca, os miúdos precisam de desenvolver competências pessoais e sociais que os protejam, tantas vezes, de si mesmos. Perante a imaturidade cognitiva que, naturalmente, ainda lhes assiste, é papel da Família demonstrar a relevância da privacidade, os momentos adequados para possíveis partilhas e, acima de todas as coisas, avaliar com consciência quais os reais motivos que se escondem nessa necessidade tão aflita, de partilhar a sua própria vida.

Que se lhe faça sentido.

Partilhe este artigo:

Veja também...

Este website utiliza cookies para melhorar a sua experiência de utilização. Leia a nossa Política de Privacidade.